Março 08 2011

 

 

A Filoteia, a destinatária idealizada da sua Introdução à vida devota (1607), Francisco de Sales destina um convite que poderia parecer, à época, revolucionário.

 

 É o convite a ser completamente de Deus, vivendo em plenitude a presença no mundo e as obrigações do próprio estado. "A minha intenção é a de instruir aqueles que vivem na cidade, no estado conjugal, na corte […]" (Prefácio à Introdução à vida devota).

 

O Documento com que o Papa Leão XIII, mais de dois séculos depois, o proclamará Doutor da Igreja insistirá sobre esse alargamento do chamado à perfeição, à santidade. Ali é escrito: "[a verdadeira piedade] penetrou até o trono do rei, na tenda dos comandantes dos exércitos, no pretório dos juízes, nos escritórios, nos comércios e até nas cabanas dos pastores […]" (Breve Dives in misericordia, 16 de novembro de 1877).

 

 Nascia assim aquele apelo aos leigos, aquele cuidado pela consagração das coisas temporais e pela santificação do cotidiano, sobre as quais insistirão o Concílio Vaticano II e a espiritualidade do nosso tempo.

 

Manifestava-se o ideal de uma humanidade reconciliada, na sintonia entre a ação no mundo e oração, entre condição secular e busca da perfeição, com o auxílio da Graça de Deus que permeia o humano e, sem destruí-lo, purifica-o, elevando-o às alturas divinas.

 

A Teotimo, o cristão adulto, espiritualmente maduro, ao qual endereça alguns anos depois o seu Tratado do amor de Deus (1616), São Francisco de Sales oferece uma lição mais complexa.

 

Essa supõe, ao início, uma precisa visão do ser humano, uma antropologia: a "razão" do homem, precisamente a "alma racional", ali é vista como uma arquitetura harmônica, um templo, articulado em mais espaços, em torno a um centro, que ele chama, juntamente com os grandes místicos, "topo", "ponta" do espírito, ou "fundo" da alma.

 

 É o ponto em que a razão, percorridos todos os seus graus, "fecha os olhos" e a consciência torna-se totalmente unidade com o amor (cf. livro I, cap. XII). Que o amor, na sua dimensão teologal, divina, seja a razão de ser de todas as coisas, em uma escala ascendente que não parece conhecer fraturas e abismos, São Francisco de Sales o resume em uma célebre frase: "O homem é a perfeição do universo; o espírito é a perfeição do homem; o amor é a perfeição do espírito, e a caridade a perfeição do amor" (ibid., livro X, cap. I).

 

 

Em uma época de intenso florescimento místico, o Tratado do amor de Deus é uma verdadeira e própria summa, e ao mesmo tempo uma fascinante obra literária. A sua descrição do itinerário rumo a Deus parte do reconhecimento da "natural inclinação" (ibid., livro I, cap. XVI), inscrita no coração do homem enquanto pecador, a amar a Deus sobre todas as coisas. Segundo o modelo da Sagrada Escritura, São Francisco de Sales fala da união entre Deus e o homem desenvolvendo toda uma série de imagens de relação interpessoal.

 

 O seu Deus é pai e senhor, esposo e amigo, tem características maternas e de zelo, é o sol que mesmo à noite é misteriosa revelação. Um tal Deus atrai a si o homem com vínculos de amor, isto é, de verdadeira liberdade: "porque o amor não tem forçados nem escravos, mas reduz tudo à sua obediência com uma força tão deliciosa que, se nada é tão forte quanto o amor, nada é tão amável quanto a sua força" (ibid., livro I, cap. VI).

 

 Encontramos no tratado do nosso Santo uma meditação profunda sobre a vontade humana e a descrição do seu fluir, passar, morrer, para viver (cf. ibid., livro IX, cap. XIII) no completo abandono não somente à vontade de Deus, mas àquilo que a Ele apraz, ao seu "bon plaisir", ao seu beneplácito (cf. ibid., livro IX, cap. I). No ápice da união com Deus, além dos repentes de êxtase contemplativa, coloca-se aquele refluir de caridade concreta, que atenta para todas as necessidades dos outros e que ele chama de "êxtase da vida e das obras" (ibid., livro VII, cap. VI).

 

Adverte-se bem, lendo o livro sobre o amor de Deus e ainda mais as outras tantas cartas de direção e de amizade espiritual, aquele conhecedor do coração humano que foi São Francisco de Sales. A Santa Giovanna di Chantal escreve: "[…] Eis a regra da nossa obediência que vos escrevo em letras maiúsculas: FAZER TUDO POR AMOR, NADA POR FORÇA - AMAR MAIS A OBEDIÊNCIA QUE TEMER A DESOBEDIÊNCIA.

 

 Deixo-vos o espírito de liberdade, não enquanto aquele que exclui a obediência, porque essa é a liberdade do mundo; mas aquele que exclui a violência, a ânsia e o escrúpulo" (Lettera del 14 ottobre 1604). Não por acaso, na origem de muitas vias da pedagogia e da espiritualidade de nosso tempo, re-encontramos exatamente a marca desse mestre, sem o qual não haveria São João Bosco nem a heroica "pequena via" de Santa Teresa de Lisieux.

 

Queridos irmãos e irmãs, em uma época como a nossa, que busca a liberdade, também com violência e inquietudes, não deve escapar a atualidade deste grande mestre de espiritualidade e de paz, que entrega a seus discípulos o "espírito de liberdade", aquela verdadeira, no cume de um ensinamento fascinante e completo sobre a realidade do amor.

 

São Francisco de Sales é um testemunho exemplar do humanismo cristão; com o seu estilo familiar, com parábolas que têm às vezes o bater das asas da poesia, recorda que o homem traz inscrita no profundo de si a nostalgia de Deus e que somente n'Ele encontra a verdadeira alegria e a sua realização mais plena.

 

Fonte:

www.cancaonova.com.br

publicado por emtudosomenteavontadededeus às 18:26

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